Cerco de políticos à Lava Jato é suprapartidário

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Fabio Possebom Fabio Possebom

Josias de Souza

Acompanhar a atividade política no Brasil tornou-se um desafio. Sabe-se que há políticos piores e melhores. Entretanto, é mais difícil discernir uns dos outros. Os gatunos ficaram ainda mais pardos depois que a política virou apenas mais um departamento da Construtora Odebrecht —o ‘Departamento de Negócios Estruturados’, enfemismo para setor de propinas. A conspiração legislativa contra a Lava Jato, que era envergonhada, desinibiu-se. Cresce na proporção direta do avanço dos depoimentos resultantes do acordo de delação premiada dos executivos da maior construtora do país.

O cerco à investigação é suprapartidário. Envolve também o governo. Michel Temer faz juras de amor à força-tarefa de Curitiba. Mas o Planalto comporta-se como uma espécie de São Jorge que sai para salvar a donzela e acaba casando com o dragão. O esforço para “estancar a sangria” faz lembrar a sucessão de investidas de políticos italianos contra a Operação Mãos Limpas, que foi deflagrada em 1992 e desnudou as relações orgânicas e promíscuas do sistema político da Itália com empresas e o crime organizado.

No Congresso brasileiro, trama-se aprovar uma anistia para todos os políticos que receberam dinheiro ilegalmente via caixa dois. Participam da articulação os principais partidos. Entre eles, por exemplo, PMDB, PT, PSDB, DEM, PP e PR. A ideia é enganchar a emenda da anistia na proposta de criminalização do caixa dois que integra o pacote de medidas anticorrupção embrulhado pelos procuradores da Lava Jato. Alega-se que o uso de caixa clandestino é disseminado na política. Sustenta-se, de resto, que não se pode criminalizar a todos indistintamente.

Num célebre discurso feito em 3 de março de 1992 no Parlamento italiano, o ex-primeiro-ministro da Itália Bettino Craxi, um dos principais investigados da Operação Mãos Limpas, disse o seguinte: “…Infelizmente, é usualmente difícil identificar, prevenir e remover áreas de infecção na vida dos partidos… Mais: abaixo da cobertura do financiamento irregular dos partidos, casos de corrupção e extorsão floresceram e tornaram-se interligados.”

Abusando do cinismo, Bettino Craxi prosseguiu: “O que é necessário dizer e que, de todo modo, todo mundo sabe, é que a maior parte do financiamento da política é irregular ou ilegal. Os partidos e aqueles que dependem da máquina partidária ]…] têm recorrido a recursos adicionais irregulares. Se a maior parte disso deve ser considerada pura e simplesmente criminosa, então a maior parte do sistema político é um sistema criminoso. Eu não acredito que exista alguém nessa Casa e que seja responsável por uma grande organização que possa ficar em pé e negar o que eu digo. Cedo ou tarde os fatos farão dele um mentiroso.”

Em março de 1993, por iniciativa do governo do então primeiro-ministro Giuliano Amato, foi ao Parlamento da Itália uma proposta de descriminalização das doações ilegais de dinheiro para os partidos políticos. A desfaçatez provocou uma reação liderada por estudantes. Orgazinizaram-se passeatas. Escolas paralisaram suas atividades. E a proposta não passou. A anistia tramada no Brasil para as doações subterrâneas não é senão uma provocação às ruas, que reaprenderam a roncar na jornada de junho de 2013.

Líder do governo Temer na Câmara, o deputado André Moura (PSC-SE) empinou na semana passada proposta de modificação das regras dos acordos de leniência, como são chamadas as delações de empresas. A proposta alivia a punição de empresas, livra seus executivos de condenações penais e retira da mesa de negociações o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União. Um acinte.

Acompanhado do ex-deputado Sandro Mabel, hoje assessor do Planalto, André Moura exibiu o texto ao ministro Torquato Jardim (Transparência), que levou o pé atrás. Havia na Câmara um pedido para que a encrenca tramitasse em regime de urgência. Súbito, esse requerimento foi retirado de pauta pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). E Moura tentou sair de fininho, negando ser o autor do projeto. O fantasma continua, porém, pairando sobre o plenário da Câmara.

Simultaneamente, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, voltou a retirar da gaveta o projeto que altera a Lei de Abuso de Autoridade. Relator da proposta, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), novo líder de Temer no Senado, bateu em retirada. Mas Renan prometeu indicar um novo relator até quarta-feira. A banda muda do Senado adere silenciosamente à iniciativa.

O juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato enxergaram na iniciativa de Renan uma tentativa de intimidação. Multiinvestigado, Renan não se deu por achado. Disse que convidará Moro e o procurador Deltan Dellagnol, coordenador da Lava Jato, para debater o projeto no Senado.

Na Itália, os botes tramados contra os investigadores foram ainda menos sutis. Em julho de 1994, por exemplo, projeto de iniciativa do governo do então primeiro-ministro Silvio Berlusconi sugeria simplesmente que fosse abolida a possibilidade de prisão antes do julgamento para determinados crimes. Entre eles os crimes de corrupção ativa e passiva. O time de procuradores da Mãos Limpas ameaçou com a renúncia coletiva. As ruas reagiram. Houve mobilizações populares defronte dos tribunais. E a proposta foi rejeitada.

Onze anos antes de autorizar a deflagração da Lava Jato, hoje a maior operação de combate à corrupção da história brasileira, o juiz Sergio Moro escreveu, em 2004, um artigo sobre a Operação Mãos Limpas. Foi desse artigo, disponível aqui, que o repórter retirou as informações reproduzidas acima sobre a operação italiana. No seu texto, Moro soou premonitório. Foi como se adivinhasse o que estava por vir.

“É ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial.”

A Mãos Limpas fisgou 6.069 pessoas. Entre elas 872 empresários, 1.978 agentes públicos e 438 parlamentares. Expediram-se 2.993 mandados de prisão. ‘‘As investigações judiciais dos crimes contra a administração pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado‘‘, escreveu Moro no artigo de 2004. Ao final, algo como 40% dos investigados não foram punidos. Leis foram alteradas. E os crimes prescreveram.

No Brasil, nos casos que dependem do Supremo Tribunal Federal, não houve nenhuma condenação. Há na Suprema Corte 42 investigações relacionadas à Lava Jato. Incluem a impressionante soma de 110 investigados. Há na lista 29 deputados federais e 13 senadores. Nenhum foi condenado. A maioria não foi nem denunciada pela Procuradoria-Geral da República. A delação da Odebrecht engordará os escaninhos do Supremo. Os políticos estão cada vez mais distantes do ideal de representantes da sociedade. As pessoas já não enxergam coisas nossas na política. É tudo uma imensa Cosa Nostra.

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