Ueslei Marcelino/Reuters
A pergunta de R$ 1 milhão que salta do inquérito sobre portos é a seguinte: admitindo-se que a reforma na casa de Maristela Temer foi custeada com dinheiro limpo, por que os pagamentos não transitaram pela rede bancária? Ou: tendo à disposição a moderna e segura ferramenta da TED, transferência eletrônica de dinheiro disponível na conta, por que a predileção por um meio de pagamento tão primitivo e suspeito como o coronel Lima?
Michel Temer declarou à repórter Roseann Kennedy que não sofre investigações, mas “um esquertejamento político e moral”. Considera-se uma vítima de ‘‘violação dos direitos constitucionais.” Lamentou: “O tratamento que me dão é indigno. Estou sendo vilipendiado.‘‘ Um dia depois do desabafo, veio à luz o teor do depoimento prestado à Polícia Federal em 29 de maio por Luiz Eduardo Visani, um dos fornecedores da reforma na casa de Maristela, sua filha. O depoente disse:
1. Entre novembro de 2013 e março de 2015, recebeu R$ 950 mil pelos serviços prestados na reforma. As faturas eram liquidadas mensalmente. Tudo em grana viva, no guichê da Argeplan, empresa de João Baptista Lima, o coronel aposentado da PM paulista que a PF aponta como operador de propinas de Temer.
2. Sugeriu que os pagamentos fossem efetuados diretamente em sua conta bancária. Contudo, a arquiteta Maria Rita Fratezi, mulher do coronel Lima e responsável pela reforma, respondeu que ele deveria receber em dinheiro, na Argeplan.
3. Avistou a filha de Temer na obra quatro vezes. Mas “nunca conversou” com ela sobre orçamento. Embora tenha apanhado o dinheiro na Argeplan, os recibos e contratos trazem o nome de Maristela Temer.
Pois bem. O depoimento de Luiz Visani deixou mal a filha do presidente. Inquirida 26 dias antes, Maristela dissera que seu pai havia indicado o coronel Lima para auxiliá-la na reforma. Logo ele, a quem os detalotes da JBS afirmam ter repassado, a pedido do presidente, propinas de R$ 1 milhão. Afirmara que Maria Rita Fratezi, a mulher do coronel, tocara a obra sem cobrar um tostão. Nem contrato havia. Sustentara, de resto, que a mulher do coronel pagou faturas em moeda sonante. Mas jurou que devolveu o dinheiro.
Por mal dos pecados, Maristela Temer disse à PF que ‘‘não sabe precisar a forma do ressarcimento.” Às vezes pagava em espécie. Outras vezes emitia cheques. Numa soma “superficial”, estimou os gastos na obra em R$ 700 mil. Menos do que os R$ 950 mil que Luiz Visani demonstrou ter recebido. Muito menos do que a conta feita pela PF, incluindo outros fornecedores que disseram ter recebido em dinheiro vivo: R$ 1,2 milhão.
No mundo dos negócios honestos, uma reforma orçada no patamar do milhão é documentada por meio de contratos, recibos e anotações no Imposto de Renda. Maristela não dispõe de nada disso. No universo das transações lícitas, os pagamentos são efetuados por transferência bancária. Os mais tradicionalistas utilizam o cheque. Ninguém se arrisca a andar pela rua com dinheiro vivo.
Se preferir, Temer pode continuar fingindo que a reforma milionária na casa da filha não virou um problema. Mas o acúmulo de coisas mal explicadas acaba produzindo outras coisas. O embaraço vira hábito, o hábito se transforma em parâmetro e, de repente, o governante acha que não deve nada a ninguém. Muito menos explicações.
O grampo do Jaburu, as duas denúncias criminais, o jantar em que Marcelo Odebrecht foi mordido em R$ 10 milhões, o silêncio ensurdecedor do coronel Lima… Nada precisa ser muito explicado no país ficcional. Mas a obra milionária na continua lá, na galeria dos assuntos pendentes.
A pose de ofendido que Temer faz quando se refere aos inquéritos que o assediam ajuda a explicar o derretimento da sua figuta imperial. O único “esquartejamento” que se observa em cena é o da lógica. A “violação” mais evidente é ao direito do brasileiro a um governo moralmente sustentável. Se algo vem sendo “vilipendiado” com frequência é a inteligência alheia.
Temer ainda não se deu conta. Mas a reforma na casa da filha está para o seu futuro penal assim como o tríplex no Guarujá está para o presente carcerário de Lula. No início, a encrenca parece um asterisco. Com o tempo vai ganhando tromba, orelha, rabo e até crachá de elefante.