Numa sexta feira às 2 da madrugada, o ano já não me lembro, mas certamente entre 2002 e 2005, fui chamado para ir à Delegacia de Homicídios, no Bairro Areal, pois haviam assassinado um Padre, salvo engano no bairro JK e vários suspeitos haviam sido detidos para averiguação.
Por óbvio nenhum confessava, mas havia forte suspeita de que o culpado estivesse entrever eles.
Havia uma testemunha que tinha avistado o criminoso e iria descrever suas características para o retrato falado. Foi para isso que entrei em cena.
Ao chegar na Delegacia vários jovens, alguns com caras de adolescentes, aguardavam para serem ouvidos.
A testemunha descreveu uma pessoa com caracarísticas bem marcantes e típicas da região.
Por uma questão técnica só permito que a pessoa veja o resultado quando o desenho está pronto.
Enfim, ao mostrar o trabalho ela ficou impressionada e disse que era muito parecido com a pessoa que ela avistou de relance.
Uma Policial Militar que estava ali de serviço, entrou na sala onde estávamos, viu o desenho sobre a mesa e perguntou surpresa: – O nome desse que foi desenhado é FULANO? A resposta foi que ninguém sabia quem era, pois era apenas uma descrição dada pela testemunha.
Então ela retrucou:
– Mas tem um aí fora que parece muito com esse desenho.
Então eu mesmo saí para constatar essa situação e entre uns dez ou mais que estavam recostados a uma parede, havia um que de fato se encaixava com precisão na descrição. Parecia que o desenho havia sido feito olhando para ele. Não deu outra… Acabou confessando!
Bem, eu tinha feito a minha parte e fui saindo, talvez umas 4 da manhã e ao passar pelo corredor entre os que estavam ali algemados, resolvi parar e conversar com eles.
– “Vocês estão numa enrascada. Alguém mais aqui está envolvido e vai responder pelo que fez. Imagino que quem agiu nesse caso o fez para conseguir dinheiro para drogas. É sempre isso que tem acontecido”.
E aí me apresentei: – “Eu sou Psicólogo. Atendo pessoas com dependência de drogas.
Certamente nem todos vocês estão envolvidos e serão liberados, porém continuarão presos às drogas e mais cedo ou mais tarde poderão ir parar atrás das grades.
Se alguém aqui quiser ser ajudado, eu estarei pronto para ajudar. Vou deixar meu cartão com vocês, ok?”
Dizendo isso coloquei um cartão de visitas no bolso da camisa, da bermuda e até no cós da calça de outro. Feito isso fui embora.
Passaram-se quase três anos e eu estava num curso ministrado por técnicos vindos da Itália. Durante uma dinâmica no curso uma senhora relatou seus problemas com um filho usuário de drogas. Uma história como muitas que já ouvimos, inclusive que ele era agressivo com ela e que tinha feito 19 anos. Chorou enquanto relatava.
Ao final houve um intervalo para um lanche e nisso a senhora do relato, aproveitando que morava próximo ao local, disse que ia à sua casa, pois daria tempo de voltar logo.
Ela caminhou pelo pátio até o portão enquanto eu fiquei na frente do prédio conversando com outras pessoas. Nisso ouvi vozes altas, em tom agressivo e logo em seguida a senhora retornando nervosa e ao passar por mim, disse: – Meu filho tá aí na frente. Tá bravo e se eu sair agora posso ter problemas.
Era praticamente um pedido de socorro.
Ela entrou e eu saí. Fui até o portão e lá avistei um rapaz já perto da esquina. Ele andava e olhava para trás. Logo parou, andou nervosamente de um lado para o outro e começou a vir na minha direção. Continuei parado olhando para a rua. Ele parou do outro lado da rua, andou agitado depois cruzou e sentou-se no meio fio, a cerca de uns três metros de onde eu estava.
Entendi como uma “rendição” e ao mesmo tempo uma atitude de quem não se sente acuado ou temeroso. Ele estava disponível.
Fui até ele e disse:
– Você parece que não está bem. Posso sentar aqui para conversar?
Ele acenou dizendo que sim. Sentei-me ao lado dele e ele logo começou a desabafar, criticando a mãe, mas também assumindo que ele era mesmo problemático. Falou do uso de drogas e que isso tava acabando com ele.
Eu me ofereci para ajudá-lo se ele quisesse se tratar o que aceitou prontamente. Marcamos um horário para o dia seguinte, alí mesmo (uma forma de testar o nível de comprometimento). Poderia ser que não comparecesse o que faz parte da dinâmica da dependência química.
Quando então levantamos e ele já bem mais calmo disse que ia para casa. Dei-lhe a mão e então tive uma surpresa.
– O senhor ainda desenha?
– Desenha? Como você sabe que eu desenho? Já me viu desenhando?
A resposta me impressionou.
– Sim. Quando mataram o Padre há muito tempo. Eu estava lá no meio daquela turma que foi prá ser ouvida. Vi o desenho que o senhor fez do fulano. Tenho medo de um dia ser eu naquela situação. Tenho aqui na minha carteira o cartão que o senhor colocou no meu bolso.
Resumindo a história, dois anos depois eu estava na solenidade de graduação na qual ele, com outra aparência, bem arrumado e sorridente ao lado da mãe e outros parentes, recebia o broche na lapela, pois havia cumprido seu programa de tratamento com sucesso.