Josias de Souza
Vanessa Carvalho/Folha
Já se sabia que Paulo Guedes será, sob Jair Bolsonaro, o Posto Ipiranga da Esplanada dos Ministérios, mentor de todas as soluções na área econômica. Tomado pelo conteúdo de suas entrevistas, Sergio Moro parece ambicionar a condição de Posto Ipiranga do B, dono das respostas ético-jurídicas do futuro governo.
Na sua entrevista mais recente, Moro disse que atuará como conselheiro de Bolsonaro quando estiver em jogo a idoneidade de outros ministros. Denunciados por corrupção devem ser demitidos? “Se a denúncia for consistente, sim”, declarou o futuro ministro da Justiça ao programa Fantástico.
Moro prosseguiu: “Eu defendo que, em caso de corrupção, se analise as provas e se faça um juízo de consistência, porque também existem acusações infundadas, pessoas têm direito de defesa. Mas é possível analisar desde logo a robustez das provas e emitir um juízo de valor. Não é preciso esperar as cortes de Justiça proferirem o julgamento.”
“Eu não assumiria um papel de ministro da Justiça com o risco de comprometer a minha biografia, o meu histórico”, afirmou Moro, ao reiterar que obteve de Bolsonaro o compromisso de que o novo governo não oferecerá escudo a suspeitos de corrupção. Cinco dias antes, em entrevista coletiva, Moro dissera que sua presença no governo dissiparia até os receios de retrocesso democrático.
‘‘Eu não vejo em nenhum momento um risco à democracia e ao Estado de direito‘‘, dissera Moro. “No entanto, (…) existem alguns receios a meu ver infundados. E a minha presença no governo também pode ter um efeito salutar de afastar esses receios infundados, porque, afinal de contas, sou um juiz, sou um homem de lei. Então, eu jamais admitiria qualquer solução que fosse fora da lei, como também o presidente eleito.”
Antes de renunciar aos seus 22 anos de magistratura, Moro usufrui de férias. Foi a forma que encontrou para manter os vencimentos enquanto se prepara para assumir as novas atribuições, em janeiro. Seria recomendável que o quase ex-juiz incluísse entre suas prioridades a leitura do ‘‘Testamento Político‘‘ do cardeal Richelieu. A obra é rara, difícil de encontrar. Mas vale o esforço.
Mal comparando, Armand-Jean du Plessis, o Richelieu (1585-1642), foi um Posto Ipiranga hipertrofiado do rei Luís 8º da França. Era o conselheiro número um. Faltando-lhe tempo para a íntegra, Moro pode começar a leitura do “testamento” pela “seção 6″. Ali, Richelieu anota que todo soberano deve eleger entre os seus conselheiros aqueles que tenham ‘‘autoridade superior‘‘ sobre os demais.
O autor esclarece: ‘‘É fácil de representar as qualidades que deve ter esse principal ministro; é difícil de as achar todas num mesmo homem […]. A felicidade ou a desgraça dos Estados depende da escolha que se fizer.‘‘ Intuitivamente, Bolsonaro encosta suas deficiências não em um, mas em dois postos Ipiranga.
Na ‘‘seção 7‘‘, Richelieu trata das inevitáveis ‘‘conspirações‘‘ a que está sujeito o ministro predileto. ‘‘Imita-se nisto a pedra jogada do alto de uma montanha. Seu primeiro movimento é lento, e quanto mais ela desce, mais peso toma, redobrando a velocidade da queda […]. É muito difícil parar uma conspiração que, não tendo sido contida no nascedouro, já esteja muito crescida.‘‘ Como juiz, Moro mandava nos autos. Ministro, descobrirá que são traiçoeiros os baixios de um governo.
Chegando ao quarto capítulo do ‘‘Testamento‘‘ de Richelieu, Moro lerá que o conselheiro-mor do soberano precisa ‘‘dormir como um leão, sem fechar os olhos […], para prever os menores inconvenientes que podem advir‘‘. Naquilo que diz respeito ‘‘à conduta dos homens‘‘, é preciso ‘‘abrir duplamente os olhos‘‘.
Avançando até o capítulo sétimo, Moro perceberá que, num ponto, o pensamento de Richelieu coincide com o seu: ‘‘Se a máscara com que a maior parte dos homens cobre o rosto […] faz-nos desconhecidos a tal ponto que, sendo postos nos grandes cargos parecem tão maliciosos quanto aí esperava-se que fossem virtuosos […], é preciso prontamente reparar o engano‘‘.
Ironicamente, coube a Paulo Guedes fazer a primeira sondagem sobre a disposição de Sergio Moro de trocar a Lava Jato pela pasta da Justiça. O contato ocorreu pouco antes do segundo turno, em 23 de outubro. No dia seguinte, por uma dessas trapaças do destino, procuradores do Ministério Público Federal em Brasília abriram investigação contra Guedes.
Apura-se a suspeita de que o guru econômico de Bolsonaro tenha obtido “benefícios econômicos” a partir de ‘‘crimes de gestão temerária ou fraudulenta‘‘ de investimentos com recursos de fundos de pensão de estatais. Guedes nega os malfeitos. Deveria ter prestado depoimento no último dia 6 de novembro. Mas a coisa foi adiada.
Supondo-se que Moro vai a Brasília com a disposição de ‘‘dormir como um leão, sem fechar os olhos”, é presumível que inclua no seu radar o inconveniente de uma hipotética denúncia formal da Procuradoria contra Guedes. Deve torcer pelo arquivamento. Do contrário, a gestão Bolsonaro viveria dias surreais. O capitão teria de buscar no Posto Ipiranga ético-jurídico conselhos sobre a conveniência de manter ou demitir o Posto Ipiranga econômico.
Em momentos assim, ensinou Richelieu na ‘‘seção 2‘‘ do ‘‘Testamento‘‘, o conselheiro do soberano talvez descubra o seguinte: ‘‘Nada há mais perigoso num Estado do que pôr em grande autoridade certos espíritos que não têm luzes suficientes para se conduzirem por si mesmos e pensam, entretanto, ter demais para necessitarem de conselho alheio‘‘.