JEFERSON MIOLA :
Por qual razão a entrevista do ministro Jaques Wagner à Folha de São Paulo provocou tanto furor no PT?
Até as pedras sabem que a desmoralização do Partido no imaginário popular decorre das escolhas impostas pelos setores que historicamente controlam e dirigem o PT: a maioria que se chamava Unidade na Luta e que passou a se chamar Construindo um Novo Brasil [CNB].
A maioria, aliás, da qual o próprio Jaques Wagner [assim como alguns dos seus críticos de hoje] foi um dos principais expoentes, e através da qual ele construiu sua trajetória partidária.
A débâcle soviética e o colapso das experiências burocrático-estalinistas do leste europeu, no início dos anos 1990, impactaram o conjunto da esquerda em todo o mundo.
Com o fim da guerra fria, sobreveio a consolidação do poder imperial dos EUA e a expansão da globalização financeira especulativa. E o neoliberalismo passou a exercer, então, uma hegemonia ideológica sem precedentes, que estruturou a dominação capitalista pelas décadas seguintes.
O PT, a mais rica e expressiva referência partidária da esquerda democrática e socialista mundial, não ficou imune a este fenômeno, mesmo que tenha nascido a partir da crítica radical ao stalinismo, ao dogmatismo e a todas as formas de degeneração burocrática do chamado “socialismo realmente existente”.
A leitura que o setor majoritário do PT fez daquela realidade e, em conseqüência, as políticas que passou a definir, trariam mudanças de enorme significação para o Partido, como a vida se encarregou de demonstrar que de fato trouxeram.
Foram operadas mudanças de duas índoles: no plano ideológico-programático; e na dimensão organizativa, do funcionamento e da estrutura partidária.
No plano ideológico-programático, o PT passou a relegar o esforço de elaboração teórica e política sobre a transformação socialista do Brasil. O léxico partidário foi sendo esvaziado de conteúdos essenciais, como da luta de classes, da democracia socialista e da construção do poder democrático-popular.
Em lugar disso, a maioria partidária impôs a “modernização” do PT, com o abrandamento ideológico que o tornaria mais palatável à classe dominante e aos olhos do grande capital doméstico e internacional. A minoria do PT, contrária a tal transmutação – porém derrotada –, era tratada pejorativamente como jurássica, esclerosada – com o endosso da mídia empenhada em fortalecer a desnaturação do PT.
As coalizões eleitorais incoerentes e contraditórias, estabelecidas com partidos políticos tradicionais e inclusive de direita [como o PP, por exemplo] para vencer eleições e ter de governar com concessões programáticas, foram desdobramentos naturais desta visão majoritária.
No plano organizativo, o setor majoritário do PT logrou aprovar mudanças estatutárias que distanciaram o PT dos seus militantes e assemelhou a democracia partidária a pantomimas onde só ficaram faltando aquelas tietes dos jogos da liga norte-americana de basquete.
Também foi decisiva a mudança na forma de sustentação financeira do PT. O afrouxamento da contribuição militante regular cedeu lugar à aceitação do financiamento empresarial das eleições. A adesão a esse sistema corrupto montado pelos partidos tradicionais e pela classe dominante que dele se beneficiam, lesou o patrimônio ético do PT.
É indiscutível que os problemas éticos enfrentados pelo PT hoje derivam do “giro modernizante” que afastaram-no dos princípios e valores programáticos que fizeram parte da sua origem e constituição naquele memorável 10 de fevereiro de 1980.
Tanto mais o PT se afastou dos seus princípios e do seu programa e adotou os mesmos critérios da política tradicional dominante, tantos maiores e recorrentes foram os problemas éticos que passou a enfrentar.
O único reparo recomendável às declarações do Jaques Wagner é quanto à conjugação verbal. Não foi o PT que se lambuzou, como diz ele, mas alguns do PT que se lambuzaram e deixaram o PT melecado na cumbuca de corrupção do sistema político que a maioria do Congresso Nacional quer eternizar, porque é beneficiária dele.
O problema, contudo, é que tais erros comprometeram a imagem do conjunto do tecido partidário – o 1,5 milhão de filiados/as e as outras dezenas de milhões de amigos/as e simpatizantes do PT. A mídia, a oposição, e os reacionários fazem de tudo para estigmatizar e criminalizar o PT e os petistas, o que é um absurdo grotesco: seria o mesmo que acusar toda a torcida corinthiana de criminosa, porque três integrantes dela causaram a morte de um torcedor num estádio da Bolívia.
Mas, a essas alturas, isso não altera o essencial: é o PT, institucionalmente, que deve prestar contas ao povo brasileiro. Neste momento histórico, o PT está ante os maiores desafios de toda sua existência. O Partido não pode adiar um gesto que está atrasado em pelo menos 10 anos; uma atitude que deveria ter sido adotada ainda em 2005: através da sua direção, deve se reportar à sociedade, se desculpar pelos desvios que alguns cometeram em seu nome e retomar sua vocação de partido ético, socialista, rebelde, coerente e transformador.
Um gesto desta grandeza confere ao PT um voto de confiança para agitar a bandeira da convocação de uma Assembléia Constituinte para a realização da reforma política verdadeira, para extirpar esse sistema político corrupto que corrói a nossa democracia.
Artigo publicado originalmente na Carta Maior