O texto publicado por Rodrigo Borges no Esporte Final na terça-feira (14) colocou na pauta da imprensa esportiva a continência de atletas brasileiros nos Jogos Pan-Americanos de Toronto. Desde então, discute-se a legitimidade do ato e sua adequação às diretrizes olímpicas por duas perspectivas. A primeira leitura possível é comercial, e diz que o gesto deve ser proibido por promover indevidamente o patrocinador dos atletas, as Forças Armadas. Segundo a “Máquina do Esporte”, essa é a interpretação do Comitê Olímpico Internacional e, de acordo com o site, acarretará em veto ao ato nos Jogos do Rio, em 2016. A outra perspectiva é mais sensível. A continência é um gesto político e, assim, deve ser proibida como mandam as diretrizes das entidades olímpicas, ou não é? Parece um tanto óbvio que sim.
Em primeiro lugar, cabe destacar que não se trata de uma ação espontânea dos atletas, como alguns deles afirmaram. Pode haver, e é totalmente legítimo, um sentimento de agradecimento pelo apoio militar ao esporte, mas a realização do gesto foi organizada pelas Forças Armadas. Três fatos deixam isso claro: a judoca Mayra Aguiar afirmou que a continência foi recomendada aos atletas; o gesto é incentivado por militares presentes na vila pan-americana, como testemunhou a reportagem do “Terra”; e, só em 2015, seis anos depois do início da parceria entre os ministérios do Esporte e da Defesa, surge a onda de continências em uma competição civil.
Se fosse uma lei ou algum tipo de obrigatoriedade, todos os atletas teriam feito o gesto quando subiram no pódio em competições anteriores. O que não foi o caso, por exemplo, da judoca Mayra Aguiar, campeã mundial no ano passado sem continência no pódio. Na Olimpíada de Londres, em 2012, a pentatleta Yane Marques ficou com os braços grudados ao corpo no pódio. Não houve continência, como no Pan-Americano.
Ainda que se tratasse de ação espontânea, isso não tiraria o caráter político do gesto. OComitê Olímpico Internacional barra todos os tipos de manifestações políticas, religiosas ou raciais sejam elas organizadas ou não. O COI faz isso por razão simples. Em uma competição envolvendo países e nações, é fácil, por exemplo, que a afirmação nacional de um seja representação xenófoba para o outro. Ao padronizar a proibição, impede-se que o evento esportivo seja tomado por questões externas.
Aqui, cabe discutir o significado da continência. O sinal é uma saudação por meio da qual manifesta-se o respeito a determinados símbolos e autoridades e é, também, marcial. Não há engano quando alguém vê o gesto ser feito: trata-se de um militar. Assim sendo, as Forças Armadas escolheram o Pan para alardear o seu – de fato exemplar e decisivo – trabalho no apoio aos atletas de alto rendimento. Ao colocar essa campanha em prática em um momento altamente positivo, a conquista das medalhas de ouro, a instituição procura passar uma imagem também positiva para a sociedade brasileira.
Em nota, o Comitê Olímpico Brasileiro disse avaliar a continência como uma “demonstração de patriotismo, sem qualquer conotação política“. Ocorre que tal leitura é amplamente equivocada, seja por considerar que as Forças Armadas estão fora da política brasileira, ou pior, acima dela. É sabido que Aeronáutica, Exército e Marinha têm um papel divisivo na sociedade brasileira, provocado por uma decisiva tomada de ladoem um momento de grande polarização, que criou uma realidade de duras violações aos direitos humanos, ainda não totalmente resolvida. Assim, quando um atleta brasileiro presta continência, ele para de representar a totalidade dos brasileiros e passa a encarnar única e exclusivamente aqueles que compartilham dos ideais das Forças Armadas. É um ato, portanto, eminentemente político.
As Forças Armadas gostam de pensar em si mesmas como uma instituição unânime. Estão longe disso, no entanto. O trabalho com os atletas olímpicos é altamente edificante e deve ser propagandeado, mas não goela abaixo, como tem ocorrido no Pan. Se os comandantes conseguirem perceber isso, quem sabe a instituição passe a trilhar um caminho menos divisivo e não precise impor sua presença.
* José Antonio Lima é editor-executivo do site de CartaCapital. Tem como maior patrimônio os álbuns completos das Copas do Mundo de 1990 a 2014.
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